terça-feira, 25 de novembro de 2025

A IA vai padronizar (ainda) mais a avaliação escolar e reduzir a autoridade professoral


Embora no meu trabalho docente, só nos últimos dois anos tivesse sentido o impacto da Inteligência Artificial (IA) na avaliação escolar e na autoridade professoral, 40 anos de serviço e as referências teóricas dos regimes de justificação (Luc Boltanski e Laurent Thévenot) ofereceram-me um quadro de pensamento robusto que permite analisar o seu potencial efeito a partir da discussão sobre a automação e a objectivação da avaliação através de ferramentas estatísticas e regulamentares.


Esta grelha de análise sugere que a generalização de um sistema automatizado ou altamente objectivado (como poderia ser a IA) poderá, de facto, aumentar as dificuldades dos professores tanto na avaliação quanto na manutenção da sua autoridade, visto que estas dependem crucialmente da dimensão humana, moral e decisória do docente.



Dificuldades na Avaliação Escolar


A avaliação escolar, embora frequentemente tratada como um exercício puramente técnico e quantificável, não é suscetível de automatização. Por mais precisos que sejam os critérios estabelecidos, a avaliação não se reduz a puras medições de conhecimentos ou competências.


1. A Necessidade do Julgamento Professoral: A classificação é sempre o resultado das decisões tomadas pelos professores. O acto de atribuir uma nota exige um "julgamento actuante", que humaniza a avaliação, distinguindo-a de uma eventual avaliação automática realizada por um programa informático. Este julgamento integra aspectos que vão além do mero desempenho cognitivo, como a dimensão moral e os diferentes regimes de justificação (industrial, doméstica, cívica).


2. A Tensão entre o Técnico e o Moral: O sistema escolar, impulsionado pela "justificação industrial" (que valoriza a padronização e a objectividade, usando a média aritmética como ferramenta central), tenta reduzir a classificação a um cálculo. Contudo, os professores sentem-se obrigados a reajustar os critérios em função das turmas, e a dimensão moral sobrepõe-se às questões técnicas nas situações de dúvida que possam prejudicar os alunos. Um exemplo claro é a rarefação dos "9's" (nota limítrofe), que são evitados porque a diferença entre o 9 e o 10 tem graves consequências no futuro do aluno (reprovação vs. aprovação).


3. Reforço do Mito da Mensurabilidade: Se a IA for generalizada para objectivar ainda mais o processo (seguindo a lógica da justificação industrial), ela limitaria o espaço de manobra do professor para exercer o seu julgamento actuante e integrar aspectos contextuais e morais (justificação doméstica). Se o cálculo se torna o expoente máximo da objectividade, o professor pode ver-se forçado a basear-se numa aritmética que se aplica a um domínio que não é mensurável (a educação). Isto intensificaria o dilema entre a necessidade de objectividade e a necessidade de justiça contextual.



Dificuldades na Autoridade Professoral


A autoridade do professor está intimamente ligada ao sistema de avaliação. A avaliação funciona como um mecanismo de sanções e recompensas, que é indispensável para a regulação das condutas na turma e a motivação para o trabalho escolar.


1. O Papel da Classificação na Regulação: A possibilidade de atribuir e gerir a classificação é uma dimensão essencial da autoridade do professor. O professor usa as notas estrategicamente, por exemplo, para obrigar o aluno a trabalhar até ao fim do ano ou para gerir as expectativas (vg. atribuindo notas mais baixas no 2º período para forçar maior empenhamento no 3º).


2. Limitação da Estratégia Pedagógica: A autoridade professoral não se pode apoiar apenas em regulamentos. Ela é legitimada pela coerência das classificações, que devem reflectir o trabalho. Se um sistema automatizado (IA) assumir o veredicto final com absoluta neutralidade e sem margem para adaptação individual ou contextual (o que seria típico da justificação industrial levada ao extremo), o professor perde a capacidade de usar a nota como "ameaça e moeda de troca" ou como instrumento de apoio (justificação doméstica).


3. Esvaziamento do Veredicto: A autoridade do professor depende do seu poder de seleccionar e ordenar os alunos. A introdução de sistemas externos e universalmente aplicados (como IA generalizada) tende a homogeneizar o espaço nacional e anular a avaliação dos aspectos não-cognitivos (comportamento, esforço). Embora a padronização seja defendida pela justificação cívica para garantir igualdade de critérios, a autoridade do professor em sala de aula é reforçada pela integração das atitudes e do empenhamento. Se a IA anular esse espaço de discricionariedade, a autoridade do professor na gestão e motivação do trabalho diário será enfraquecida, pois a legitimidade do seu veredicto professoral seria diluída por um processo externo e técnico.


Em resumo, a a generalização da IA – ao automatizar ou objectivar o processo de classificação, de forma semelhante à forma como as médias aritméticas e os critérios de exame padronizaram e cristalizaram a pedagogia – tenderia a reforçar o predomínio da justificação industrial na avaliação. Isso tornaria mais complexo o exercício da avaliação e da autoridade, na medida em que minaria a capacidade do professor de introduzir os necessários juízos morais e adaptações pedagógicas (justificação doméstica) essenciais para legitimar as notas e motivar os alunos.

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