Já saíram à rua mais de 10 mil professores
Isabel Leiria
Acesso à categoria de titular, avaliação e alterações à gestão escolar são alguns dos motivos na origem dos protestos desta semana
Ao longo de três anos de governo, a actual equipa do Ministério da Educação já enfrentou greves em época de exames nacionais, a maior manifestação de professores dos últimos 25 anos, vigílias à porta da 5 de Outubro, semanas de luta. Mas nunca como agora a contestação às políticas educativas foi tão intensa.
Numa semana, desde o protesto de sábado passado no Porto até ontem em Aveiro, mais de dez mil docentes saíram às ruas, em diferentes cidades, de acordo com as contas dos sindicatos, movimentos e polícia. E continuarão, a um ritmo quase diário, até 8 de Março, data da "marcha de indignação dos professores".
Inicialmente promovidos por sindicatos afectos à Fenprof (à excepção da concentração no Porto, convocada por SMS, mails e blogues, sem que se tenha tornado pública a sua origem), os protestos têm ganho dimensão com ajuda da promoção feita em páginas na Internet dedicadas à educação e ao "passa SMS" entre milhares de colegas que se sentem "atacados" como nunca. Vários manifestam-se pela primeira vez e muitos têm-se juntado em torno de movimentos cívicos que, em um mês, se transformaram em novos protagonistas da contestação.
Os movimentos
Movimento dos Professores em Luta, Movimento dos Professores Revoltados, Defende a Profissão, Em Defesa da Escola Pública são apenas alguns exemplos de grupos docentes à margem das organizações sindicais e que se assumem como apartidários. "Há um mal-estar social que não atinge apenas os professores. E a tensão que se vive nas escolas levou as pessoas a procurar formas de expor os seus receios. Daí a criação de movimentos cívicos por todo o lado", diz o professor de História Vitorino Guerra, um dos fundadores do movimento Em Defesa da Escola Pública. Na sua primeira reunião, em Leiria, contou com 160 docentes. Semanas depois juntaram-se oito centenas.
"Parecia-nos que as organizações sindicais não estavam a mobilizar-se, em termos de acções de luta, de forma eficaz e que a sua ligação às escolas estava um pouco suspensa. Foi isso que nos levou a criar um movimento paralelo e complementar dos sindicatos", explica Mário Machaqueiro, promotor da Associação de Professores e Educadores em Defesa do Ensino, que reúne vários movimentos cívicos.
Nas escolas têm sido vários os conselhos pedagógicos e executivos a aprovar declarações de repúdio, particularmente em relação à avaliação. Da esquerda à direita chovem críticas dos partidos a todos os diplomas que vão sendo aprovados. E nem as recentes palavras de elogio ao "esforço" da classe que se têm ouvido a José Sócrates e à ministra da Educação parecem já servir para apaziguar os ânimos.
Manuela Teixeira, a ex-dirigente que esteve 25 anos à frente da Federação Nacional dos Sindicatos da Educação, diz mesmo não se recordar de nenhum momento de contestação como o que se está a viver por estes dias (ver texto nestas páginas).
"Processo viciado"
Na opinião de Vitorino Guerra, o agravamento do mal-estar aconteceu com o concurso para professor titular (a mais alta categoria prevista no novo estatuto). "Geraram-se injustiças terríveis e a partir daí o processo ficou viciado." "O discurso é o do mérito. Mas não houve avaliação da qualidade da prática pedagógica, nem dos conhecimentos técnico-científicos", justifica. Como o concurso só valorizou o percurso dos professores nos últimos sete anos, tudo o que foi feito para trás não contou. E, como se realizou ao nível da escola, houve professores de escalões mais elevados e com pontuações superiores ultrapassados por outros. Alguns ficaram excluídos por um ponto, exemplifica este professor.
O decreto regulamentar da avaliação dos professores e o novo modelo de gestão escolar, aprovados já este ano, acabaram por se tornar na gota de água. Sobre a avaliação disparam-se críticas em várias direcções. Desde o calendário escolhido pelo ME - as escolas foram chamadas, a meio do 2.º período, a elaborar os instrumentos de medida da avaliação, a adaptar os documentos internos e a definir com os professores os objectivos para este ano lectivo e o próximo - aos critérios previstos. "O professor surge como o único responsável pelo sucesso dos alunos, como se não houvesse outras variáveis sócio-culturais e económicas", exemplifica Vitorino Guerra.
Sobre a gestão questiona-se a "democraticidade" de um sistema em que muitos poderes são concentrados num director, que escolhe os coordenadores dos departamentos e avalia os professores.
Mário Machaqueiro pergunta, por seu turno, por que razão se invoca a necessidade de reforçar as lideranças com este modelo de gestão, quando, de acordo com a Inspecção-Geral da Educação, 83 por cento de 100 escolas avaliadas merecem uma classificação de bom ou muito bom e 90 por cento obtiveram a mesma nota na organização e gestão.
Álvaro dos Santos, presidente do Conselho das Escolas, admite que a contestação é "inelutável", mas, pessoalmente, considera que alguma está a ser "empolada". Como presidente deste órgão consultivo garante que vai continuar a "fazer tudo para que as escolas tenham condições efectivas para fazer bem o seu trabalho".
16 de Fevereiro
Dezenas de pessoas, convocadas por SMS, manifestam-se à porta da sede do PS em Lisboa, quando Sócrates se reunia com docentes socialistas
23 de Fevereiro
Mais de dois mil juntam-se no Porto, Leiria e Caldas da Rainha
26 de Fevereiro
Três mil professores desfilam em Coimbra. Nos dias seguintes protestos em Viseu, Guarda e Castelo Branco juntaram mais de cinco mil
Plataforma espera mais de 25 mil em Lisboa
Sindicatos recorrem a Cavaco Silva
Perante o que considera ser um "quadro de grande instabilidade nas escolas" e a "panela de pressão" em que se transformou o sistema educativo, a plataforma sindical que reúne as dez organizações representativas da classe considera que é "fundamental, urgente e inadiável" a intervenção do Presidente da República. "Vamos pedir uma audiência ao Presidente da República, para que fique na posse de todos dados sobre o que se passa na Educação. Respeitaremos a sua decisão, mas queremos prestar todos os esclarecimentos", anunciou ontem Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof.
Sobre a "marcha da indignação", marcada para dia 8 de Março e que contará com o apoio de todos os sindicatos, da Associação Nacional dos Professores, estando aberta a todos os docentes, sublinhou Mário Nogueira, as expectativas são grandes. "Esperamos, no mínimo, tantos como os que estiveram na última manifestação [25 mil, em Outubro de 2006]. O largo fronteiriço à Assembleia da República seria demasiado pequeno", explicou ainda Mário Nogueira, justificando assim a alteração de percurso, que se iniciará no Marquês de Pombal e terminará na Praça do Rossio. "O primeiro-ministro vai perceber que a contestação às políticas do ME não são uma invenção dos sindicatos", disse.
Por considerar o momento actual "politicamente gravíssimo", Mário Nogueira entende que esta seria também a altura de marcar a reunião "há muito pedida" com José Sócrates, de forma a discutir "cara a cara" a resolução da situação. I.L.
Ontem o protesto foi em Aveiro
Maria José Santana
"Maria de Lurdes dá-me a tua camisola." O pedido estava escrito num dos vários cartazes exibidos pelos mais de 2000 professores que ontem à noite se manifestaram nas ruas de Aveiro. "No futebol toda a gente quer a camisola do seu ídolo. Como admiro muito a ministra, quero a camisola dela", explicava Teixeira Homem, o autor da irónica mensagem. Com mais de 30 anos de serviço na docência, este professor da Escola Secundária Jaime Magalhães Lima, em Esgueira, no concelho de Aveiro, garante ter realizado ontem a sua estreia em manifestações de protesto. "Porquê agora? Porque nenhum outro governo havia tratado tão mal os professores", asseverou.
Maria José Tavares, professora do primeiro ciclo, na Gafanha da Nazaré, em Ílhavo, também garantiu ser uma estreante em acções de protesto, apesar de já contar com 30 anos de serviço. "Estou contra tudo. É muito injusto ter já todo este tempo de serviço, estar com 52 anos, e saber que só saio aos 65 anos", relatou. À medida que vai falando, Maria José não consegue parar a enunciação dos motivos do seu descontentamento. "Vou ser avaliada por colegas que têm muito menos anos de serviço do que eu, que não têm prática nenhuma", apontou. Logo a seguir deixa o desabafo: "Obrigam-nos, agora, a preencher uma série de papelada, burocracias, e ficamos sem tempo para preparar as aulas. Eu tirei um curso para ensinar crianças e não para preencher papéis."
A manifestação que ontem tomou conta da principal artéria de Aveiro, e que foi convocada pela Fenprof, aconteceu uma semana depois de uma marcha de protesto de professores ter percorrido as ruas da cidade da ria, no âmbito de um movimento espontâneo, nascido na Escola Básica Integrada (EBI) de Eixo, no concelho de Aveiro. Há um mês, os docentes começaram a ir para esta escola vestidos de negro, em sinal de luto, e, rapidamente, passaram a sua luta para as ruas. Primeiro, com uma pequena concentração à porta da EBI de Eixo, no dia 14. Uma semana depois, e já com a participação de mais de uma centena de colegas de outras escolas da região - convocados por e-mail e SMS -, desfilaram ao longo da Avenida Dr. Lourenço Peixinho rumo ao Governo Civil, no mais completo silêncio e à luz das velas.
António Morais, responsável pelo movimento de docentes de Eixo, e autor de um manifesto e uma carta aberta a todos os professores, declarou ao PÚBLICO que, ontem, já estava a assinalar o 31.º dia de luto. E fez questão de deixar um aviso a José Sócrates: "Estes professores não são todos comunistas, nem sindicalistas e muito menos professorzecos." Já para a ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, dirigiu a acusação de que está a fazer com que a educação fique "em cacos". "É muito boa a decidir, mas muitas vezes decide mal. Mas é péssima a motivar e seria uma péssima professora", referiu António Morais - uma declaração que foi fortemente aplaudida pelos manifestantes.
"Será muito difícil travar este movimento"
Reuniões pela madrugada fora. Plenários cheios. Greves "daquelas que fechavam escolas". Manifestações - a 18 de Novembro de 1988, por exemplo, saíram 20 mil à rua em Lisboa, nas contas da Fenprof. Os anos de 1988, 89 e 90 marcam um dos períodos de maior contestação da classe docente nas duas últimas décadas. A ex-sindicalista Manuela Teixeira recorda esse tempo em que dirigia a Federação Nacional dos Sindicatos de Educação (FNE) e em que o Estatuto da Carreira Docente proposto pelo então ministro da Educação Roberto Carneiro (Cavaco Silva era primeiro-ministro) desencadeou uma irritação geral. Mas, ao contrário do que se tem passado por estes dias, nessa altura os sindicatos tinham o monopólio da organização dos protestos. Hoje não é bem assim. E "será muito mais difícil travar este movimento" de contestação que está em curso, acredita.
Manuela Teixeira - que durante 25 anos esteve à frente da FNE e hoje se dedica ao ensino - justifica esta afirmação não só pelo número de professores que estão a manifestar-se todos os dias, como sobretudo pelas características dos protestos.
As greves
É certo que não há greves sucessivas - como as que os professores fizeram em alguns momentos nos últimos 20 anos. Em 1991, por exemplo, os professores decidiram faltar alternadamente às reuniões de avaliação (num dia só paravam os de Inglês, noutro os de Matemática e assim sucessivamente), para exigir os aumentos salariais que o Governo tinha prometido. E, em 1995 (era ministra Manuela Ferreira Leite), várias greves de docentes do ensino superior impediram que milhares de alunos fizessem provas específicas. Agora, diz Teixeira, "os professores ponderam 20 vezes antes de fazer uma greve, porque as greves mexem muito no bolso, os seus salários não têm sido aumentados e muitos têm cônjuges no desemprego."
O que não significa um movimento menos forte. "Dantes sentíamos revolta", diz. "Hoje, os professores sentem-se desrespeitados, há um sentimento de desespero." Mas há ainda um outro factor que distingue o momento que se vive: "O Governo teve a preocupação de dispersar os sindicatos, que foram quem sempre mobilizou a luta dos docentes" e quem assumiu o papel de interlocutor do executivo. Se, no passado, após um período de contestação, havia acordos entre ministério e sindicatos, os sócios destes últimos aceitavam o acordado. Agora, quando são grupos de docentes a, espontaneamente, marcar vigílias e marchas, "será muito mais difícil travar este movimento, porque o Governo não tem interlocutores". Andreia Sanches
1988 e 1989: Os professores recusam passar a receber menos do que os técnicos superiores da função pública, contestam o Estatuto da Carreira Docente e exigem uma gestão democrática das escolas. Há manifestações e greve. Roberto Carneiro é o ministro da Educação
1990: A prova de acesso ao 8.º escalão, último grau da carreira docente, gera grande contestação
1998: Sindicatos unem-se para reclamar nas ruas a redução da carreira docente para 25 anos. Marçal Grilo é o ministro da Educação
2000: Várias acções de luta alertam para o desemprego dos professores. O ano começa com a ocupação de centros
de emprego. Guilherme
d"Oliveira Martins é o ministro da Educação
2005: Federação Nacional da Educação (FNE) e Fenprof convocam quatro dias de greve aos exames nacionais do 9.º e 12.º anos. Contestam o congelamento das progressões automáticas e o aumento da idade da reforma
2006: A manifestação de professores do dia 5 de Outubro junta um número considerado recorde de docentes - 25 mil. Mais uma revisão do Estatuto da Carreira Docente está no centro da polémica. A avaliação dos professores é dos pontos mais contestados.
PS - Eu não teria copiado os textos se a política do jornal PÚBLICO fosse manter os artigos online, caso em que apenas faria os respectivos links.
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