segunda-feira, 10 de março de 2008

A avaliação de professores e o ciclo político

As reformas em educação exigem tempo para produzirem resultados. A avaliação de professores é evidentemente necessária, mas para o processo ser implementado sem provocar situações injustas, seria necessário equacioná-lo a longo prazo, o que entra em colisão com o ciclo político. No passado dia 8, João Santos chamou a atenção para este aspecto evocando os princípios teóricos de João Freire, numa mensagem que dirigiu ao Director do PÙBLICO.
Os políticos têm outras preocupações. Daria imenso jeito a Sócrates que este dossier não se arrastasse até 2009, e que ficasse resolvido quanto antes. Em resultado dos limites impostos pelo ciclo político, as escolas têm sido alvo da diarreia legislativa do ME. O concurso extraordinário para professores titulares é apenas um exemplo de como se pode fazer depressa, desde que não se acautelem as mínimas garantias de justiça. A uns faltaram uns míseros pontos. A outros saiu-lhes a lotaria, mas não se reconhecem de modo nenhum mais competentes que os colegas.

Transcrevo abaixo o texto de João Santos.




Senhor Director,



Li, com muita atenção e interesse, o artigo do Prof. João Freire hoje publicado no jornal que dirige, sob o título A rua não tem sempre razão. A leitura do Estudo sobre a reorganização da carreira docente do Ministério da Educação, que conheço há cerca de um ano, levou-me a querer participar na sua discussão, o que fiz através de um texto a que tive a presunção de chamar, após o antetítulo com o nome do trabalho, Um exemplo de reconstrução normativa da ‘profissão docente’. Um título excessivamente distante da rua, por certo, posto que logo traduzido, pela pessoa com responsabilidade editorial, por um mais prosaico Mudança por decreto(1), ‘sindical’ e infiel ao meu respeito pelo império da lei e consideração democrática pelo governo legítimo.

Na altura, apesar das, penso que fundamentadas, críticas que lhe dirigi, quis reconhecer ao trabalho de João Freire a qualidade da prudência. Mas eis que hoje, depois de percorrido o artigo atrás citado, me ficou uma dúvida. Em que ponto é que o texto de João Freire ‘não cola’, na sua esforçada tentativa de esvaziar a rua ou, ao menos, o peso político dessa rua que por aí vai? O que é que nele é menos concordante com o pensamento expresso do próprio João Freire, homem que julgo saber prudente e meticuloso? Não, certamente, o modelo de uma carreira piramidal, com múltiplos momentos de avaliação. Não, certamente, o reconhecimento da escassez de evidências empíricas capazes de suportar, sem mais, as propostas que apresentou ao ME em 2005. Nem, também, a sua esboçada posição sobre o modelo de gestão das escolas, que seria de grande interesse reeditar neste momento. Na verdade, de nada disso se tratava, realmente, no artigo de João Freire, mas antes, e tão-só, de nos precaver contra a rua. Então, por que razão me deixou alerta? Não, como é evidente, pela originalidade do argumento. Foi então que descobri.

Em Dezembro de 2005, João Freire era um homem sem pressa. Permita que transcreva da minha própria prosa:

«A transição para a nova estrutura de carreira, e particularmente o acesso dos professores de 8º, 9º e 10º escalão ao estatuto de professor titular, é pensada por JF como um processo em dois momentos: equiparação e titularização efectiva, mediante provas públicas com debate de “port-folio documental e reflexivo” relativo aos últimos 10 anos de carreira, a realizar apenas quando todo o dispositivo de avaliação estivesse montado, i.e., em 2009/10. Ponto relevante, e repetidas vezes sustentado, a rápida obsolescência e irrelevância de juízos avaliativos transactos e, mesmo, de títulos académicos e profissionais» (itálicos meus).

E é precisamente aqui, no que diz respeito a carreiras e avaliação, que as coisas continuam a não bater certo. Ao extraordinário concurso para professor titular segue-se um dispositivo de avaliação digno de um deus enlouquecido, com prazos e modalidades de concretização absurdos, e nisto, justiça lhe seja, João Freire não tem qualquer responsabilidade. Porquê, então, ignorar, neste ‘texto de combate’, as suas próprias, e sábias, palavras, se elas vão direitas ao coração da rua, ao cerne da motivação - anómica, conceda-se - desta rua? Referindo-se ao processo de transposição e incorporação das medidas que propunha para as organizações educativas, João Freire dizia:

«Aqui apenas desejamos chamar a atenção dos responsáveis para dois ou três preceitos simples: − A grande escala dos dados em presença (números de docentes e de alunos) torna por vezes decisiva a fixação de um pormenor; − A responsabilidade dos “negociadores” deve estar menos ligada à sua capacidade de ameaça conjuntural presente (pressão ou retaliação) mas sobretudo aos efeitos de médio/longo prazo sobre a dinâmica dos sistemas em causa; − A representação colectiva de interesses e a assunção de determinados valores tem de ser escrutinada não apenas num “balanço económico” de custos e ganhos internos, mas também num conjunto sistémico que engloba todos os actores em presença (vide a conhecida imagem daqueles que serram o ramo em que estão assentes)» (Estudo, p. 105).

Por tudo isto – lição de João Freire – se torna particularmente incómoda a sugestão de que há uma categoria de trabalhadores que devem esconder de si próprios a sua, ainda não inteiramente delinquente, condição de assalariados, ao mesmo tempo que se vai brandindo aos quatro ventos as respectivas insuficiências e a absoluta necessidade de lhes corrigir os defeitos, praticando, sempre, o vício intelectual da amálgama: «os professores» (Vital Moreira, Público, 4.3.08). A rua não tem sempre razão. Nem o governo. Nem o secretário-geral do meu partido. E outras vezes têm. Mas há uma categoria de cidadãos que certamente nunca tem, por deformação moral e cívica incorrigível: os zelotas que por aí vão pululando e que o comentário frívolo, maniqueu e tauromáquico conforta. E esses, Senhor Director, não lêem João Freire, tanto o João Freire desta manhã como o intelectual tranquilo e humilde que, seguro da importância do que propunha (basta lê-lo), se esqueceu, há 3 anos, de que era preciso ‘pô-los na ordem’ até às eleições de 2009. Apenas porque isso é funcionalmente requerido pela disputa dos votos do centro, esse outro lado da rua de que ninguém quer falar. Ou por uma ilusão de reforma. Por quase mais nada.

Cordialmente,

João Santos

(1) Jornal de Letras nº 969, 21 de Novembro a 4 de Dezembro.

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